quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Serão os valores morais universais?


Todos sabemos que há muitas maneiras de entender o que são direitos e vemos que variam de país para país e de cultura para cultura. Assim, propor direitos "humanos", "universais" ou "morais" não é fácil. No entanto, foi o que a Assembleia-Geral da ONU propôs em 1948: estabelecer direitos aceitáveis e obrigatórios em todos os países, qualquer que seja a sua história, orientação religiosa e filosófica e quaisquer que sejam as circunstâncias políticas e económicas. Uma vez que pretendem ser independentes das tradições e das práticas culturais particulares, estão, por isso, acima do que cada país possa estabelecer sobre eles. É nesse sentido que se dizem universais e inalienáveis. Isto quer dizer que nenhum ser humano pode ser "expropriado" destes direitos porque, se assim fosse, ficaria privado do que a Assembleia da ONU definiu : todos os seres humanos possuem igualmente dignidade.


David Stewart e Gene Blocker, Fundamentals of Philosophy, (adaptado)

Foto 1948, Cartier-Bresson

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Outro sentido de bom



Assim, pois, vertidas em origem para a parte passiva do bom, as investigações só mais tarde puderam conduzir-se para a parte activa, a fim de estudar a conduta do homem qualificado bom, não mais em relação aos outros, mas em relação a si mesmo e sobretudo para dar-se conta, por um lado, do respeito objectivo que inspira aos outros e da satisfação em si mesma especial, que atribui evidentemente ao indivíduo, do momento em que a adquire com sacrifícios de toda sorte; e por outro lado, da dor interna que acompanha o mau propósito, qualquer que seja a vantagem externa que haja dado a quem o nutria. Ai tiveram origem os sistemas de moral, tanto os que se apoiam na filosofia, quanto os que se fundam nas religiões. Todos eles procuram reunir por algum modo a felicidade à virtude. Os primeiros esforçam-se para chegar a esse ponto, ou por meio do princípio de contradição, ou pelo da razão, isto é, identificando a felicidade com a virtude, ou fazem a primeira derivar da ultima; mas não nos dão mais do que sofismas. Os segundos crêem atingir o objectivo, admitindo outros mundos além dos que a experiência nos pode fazer conhecer. (1) O nosso estudo, entretanto, nos fará saber que a essência da virtude é uma aspiração que possui efectivamente uma tendência contrária à da felicidade que quer o bem-estar e a vida.
De quanto havemos exposto resulta que, em virtude da sua noção, o bom é ( …) essencialmente relativo, porque a sua natureza consiste na sua relação com uma vontade especial. O bom absoluto é, portanto, uma contradição; o bem supremo, summum bonum, significa a mesma coisa, isto é, uma satisfação final da vontade, depois da qual não mais surgiriam novos desejos, motivo derradeiro cujo cumprimento apagaria de maneira indestrutível o querer. Ora, segundo as considerações contidas até aqui, neste quarto livro, semelhante coisa é inadmissível. A vontade não pode encontrar uma satisfação que lhe permita não mais recomeçar a querer, tanto quanto não poderia o tempo acabar ou começar. Não existe para a vontade uma realização durável e para sempre satisfatória da sua aspiração. A vontade é o tonel das Danaides. Para ela não há bem supremo, absoluto, mas apenas um bem que é sempre provisório. Se, porém, nos empenhássemos com o fim de dar um emprego honorário, de certa maneira a título emérito, a uma antiga locução que não se quisesse pôr completamente fora de uso, poder-se-ia, figuradamente e metaforicamente, denominar bem absoluto, “summum bonum”, ao querer quando se suprime e se nega a si mesmo, à verdadeira ausência de volição, única a apagar e sufocar para sempre a vontade, única a dar tão grande satisfação que já não pode ser perturbada por coisa alguma, única a redimir o mundo e disto trataremos dentro em pouco no fim deste estudo. Pode-se considerá-la como o único remédio que cura radicalmente, enquanto todos os outros não são mais que paliativos e anódinos. Neste sentido, a palavra grega “(C. g.)” bem como a latina finis bonorum se aplicam ainda melhor à coisa. Eis quanto tinha a dizer sobre as expressões bom e mau. Agora, entremos na questão.
Quando um homem, apenas se lhe ofereça a ocasião e nenhuma força extrema lho impeça, está sempre disposto a agir injustamente, nós o chamamos mau. Isto significa, segundo a nossa definição de injustiça, que esse homem não se limita a firmar o seu querer-viver como se manifesta no seu corpo, mas estende essa afirmação até negá-la nos outros indivíduos. Demonstra-o procurando empregar as forças desses indivíduos ao serviço da sua vontade e destruir-lhes a existência quando se tornam obstáculo às suas aspirações. Tudo isto resulta, em última análise, daquele extremo egoísmo cuja natureza havemos definido anteriormente. Desde o começo ressaltam aqui duas coisas: Em primeiro lugar, que a vivacidade do querer-viver é excessiva em tal indivíduo e vai além da afirmação do seu próprio corpo; em segundo lugar, que a sua consciência, submetida ao princípio de razão e embebida do princípio de individuação, se atém obstinadamente apegada à distinção que este último estabelece entre a sua pessoa e todas as outras; por consequência, esse alguém não procurará senão o próprio bem e permanecerá completamente indiferente ao dos outros; ou antes, o próprio ser deles será estranho a seus olhos e separado deles por um largo abismo; porque, a bem dizer, os considerará como simples fantasmas que nada têm de real. Estes dois elementos formam a base fundamental dum carácter mau.
 Shopenhauer, O mundo como vontade e representação, Bondade e maldade
 
Foto: Rodney Smith

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Rousseau: A piedade como sentimento moral


Toda a moralidade das nossas acções está no julgamento que trazemos dentro de nós. Se é verdade que o bem seja bem, ele deve estar no fundo dos nossos corações assim como nas nossas obras, e o primeiro prémio da justiça é o de sentir que a praticamos. Se a bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem não poderia ser são de espírito e bem constituído se não fosse bom. Se assim não for, se o homem é mau naturalmente, ele não pode parar de o ser sem se corromper, e a bondade é nele, não mais que um vício contra natura. Feito para lesar os teus semelhantes como o lobo sacrifica a presa, um homem humano seria um animal tão depravado como um miserável lobo; e só a virtude nos deixaria remorsos.
Entremos em nós próprios, oh meu jovem amigo! Examinemos, sem qualquer interesse pessoal, aonde nos conduzem as nossas inclinações. Qual é o espectáculo que mais nos anima, o dos tormentos ou o da felicidade de alguém? O que nos é mais doce de fazer, e nos deixa uma impressão mais agradável depois de o ter feito, um acto de bondade ou um acto de mesquinhez? Por quem vos interessais nos vossos teatros? É  a perversidade que vos dá prazer? É à punição dos seus autores que dais as vossas lágrimas? Tudo nos é indiferente, dirão eles, fora do nosso interesse: e, completamente ao contrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos nas nossas dores; e, mesmo nos nossos prazeres, seríamos demasiado solitários, demasiado miseráveis, se não tivéssemos com quem os partilhar. Se não há nada moral no coração do homem, de onde lhe vêem estes arrebatamentos de admiração pelas acções heróicas, estes encantamentos amorosos pelas grandes almas? Este entusiasmo pela virtude, que relação terá com o nosso interesse particular? Porque prefiro eu ser Catão que rasgou as suas entranhas, a ser César triunfante?  Tirai dos nossos corações este amor do bem, tirareis todo o charme da vida. Aqueles cujas vis paixões sufocaram a sua alma limitaram estes deliciosos sentimentos; aquele que, à força de se concentrar dentro de si , acaba por só se amar a si mesmo, não tem arrebatamentos, o seu coração gélido não palpita mais de alegria; um doce enternecimento não humedece os seus olhos;  não goza mais com nada; o infeliz não sente mais, não vive mais; já está morto.

Jean- Jaccques Rousseau, Émile ou de L’Éducation, Flammarion, 1966, pág.373,374

Tradução de Helena Serrão

Fotografia de Rodney Smith

A moral fundada na natureza humana, mais propriamente no sentimento (no coração) como o que nos aproxima do outro e desse modo encontrar nele aquilo que encontramos em nós, o que poderíamos chamar de empatia ou numa linguagem herdeira das virtudes cristãs, a piedade como inclinação para sentir os outros como iguais, na sua humanidade de dores e alegrias. Contrariamente aos princípios do sistema moral de Kant, esta proposta de Rousseau parece-me mais enriquecedora e essencial porque, podendo correr mais riscos uma vez que o sentimento tem atrás de si toda uma tradição filosófica negativa, a suspeita de ser volátil e nos tornar vulneráveis, é por outro lado o que nos impele para o outro, num sentido amoroso e o que nos impede de o molestar.